Ação de resistência de artistas aconteceu durante as audiências da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre emergência climática realizadas no Teatro Amazonas, na capital do estado. Na imagem acima, a dançarina e B-girl, Thaysa Magalhães (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real).
Manaus (AM) – Em meio à catástrofe ambiental que arrasou várias cidades do Rio Grande do Sul e às ameaças em torno dos territórios amazônicos, artistas realizaram a intervenção “Mulheres livres para se expressar: a arte pela Amazônia” durante as audiências da Corte Interamericana de Direitos Humanos em Manaus. As audiências, entre 27 e 29 de maio, no Teatro Amazonas, ocorreram em torno da Opinião Consultiva para os temas da Emergência Climática e Direitos Humanos.
O manifesto das artistas defendeu os direitos humanos e a justiça climática. A atividade fez parte da campanha global “Livre para Protestar”, da Artigo 19, organização não-governamental que defende e promove a liberdade de expressão.
A ação chamou a atenção para as questões que envolvem a devastação da Amazônia, além da liberdade de expressão artística na construção do debate público, a resistência às mudanças climáticas e a promoção dos direitos humanos. O interesse é amplificar e proteger as vozes de mulheres que se posicionam, sobretudo aquelas que são de territórios e bases populares.
“A expectativa é conseguir mobilizar toda a comunidade vinculada ao sistema interamericano de direitos humanos para olhar com atenção para o papel da liberdade de expressão, mais especificamente para o papel de liberdade de expressão artística de mulheres que estão inseridas em territórios-chave de enfrentamento à emergência climática”, afirmou Raquel da Cruz Lima, coordenadora do Centro de Referência Legal da Artigo 19.
Cinco artistas do Coletivo Tinta Preta e do Coletivo Hip Hop Pai D’Égua, que atuam na Amazônia paraense, apresentaram suas obras desenvolvidas do ponto de vista da experiência da mulher amazônida impactada pelas condições extremas do clima e pelas desigualdades socioambientais, raciais e de gênero. São elas: Mina Ribeirinha, grafiteira e fundadora do Coletivo Tinta Preta e Coletivo Hip Hop Pai D’Égua; Isa Muriá, artista visual e grafiteira; Thaysa Magalhães, b-girl; Emy, grafiteira arte educadora; e May Sodré, MC, produtora e articuladora cultural.
Da periferia de Belém, no Benguí, Mina Ribeirinha começou sua trajetória na cultura hip-hop e no movimento negro há quase 20 anos, sendo estes os fundamentos de sua base artística nas ruas. O trabalho que realiza com a pintura e o graffiti, que aborda as vozes femininas da Amazônia como protagonistas, dialoga com a questão ambiental e a luta por moradia.
“O nosso território tem enfrentado a especulação imobiliária, que avança dentro dos bairros onde as pessoas estão remanejadas. Os territórios são ocupados por shoppings e grandes condomínios de luxo. O desmatamento dessas áreas causa também o aquecimento, porque onde se tira a floresta e se coloca concreto, há uma pavimentação que não é compatível para o nosso território”, denuncia a grafiteira.
A pintura apresentada por Mina reflete o uso de construções ecológicas que possam dialogar com a natureza dos territórios amazônicos. “Se conectar ao que era antes, com formas sustentáveis de construção que dialoguem com os territórios, como as casas bio construtivas que respeitam a questão climática de conservação e diminuem o uso de algumas substâncias, ou até mesmo materiais que são nocivos”, explicou.
Além de falar sobre a reconexão com o passado e aprendizado com os ancestrais para manter o respeito com o meio ambiente, a artista destacou ainda o protagonismo da população dos territórios amazônicos nos debates sobre as questões ambientais. “Não se vê esse povo no centro do debate. Amazônia somos nós, a Amazônia está de pé porque existe um povo que faz a manutenção desse território”.
Artistas sofrem efeitos da crise climática
A b-girl Thaysa Magalhães atua há mais de 10 anos se expressando por meio da dança. Ela também é professora de educação infantil e leva a conscientização da preservação do meio ambiente e contra o desmatamento para seu trabalho artístico. Moradora do bairro do Guamá, na periferia de Belém, a dançarina é diretamente impactada pelas mudanças do clima
“Eu sempre estou gripada por causa da situação climática, do sol e do superaquecimento. Sair para trabalhar no horário de meio dia e depois pegar chuva deixa a gente doente. Tem o alagamento, porque onde eu moro é um bairro abandonado pela falta de políticas públicas, mas também é cercado pelo rio. Qualquer ‘chuvinha’ já alaga a minha casa. Falar de clima é uma questão do meu território e da minha identidade”, reforçou.
Do bairro da Pedreira, também em Belém, a grafiteira e arte educadora Emy realiza seu trabalho na rua e luta por espaço para a arte. O clima extremo das cidades amazônicas interfere nesse fluxo e afeta sua saúde física.
“Se eu estou na rua todo dia, eu sinto esse impacto. Todo dia sinto calor que queima a minha pele, que já feriu a minha pele. É dessa forma que as artistas de rua na Amazônia são afetadas”, revelou a artista.
Emy reivindica a luta pelos direitos ambientais e sociais dentro do seu território, e apresentou uma obra sobre as benzedeiras amazônicas, as mulheres que fazem o trabalho de curar através da fé e das plantas. “Elas são mulheres de importância e de ancestralidade muito forte. A obra faz essa ligação do espiritual com o meio ambiente, porque quando a gente não tem esse meio ambiente preservado o nosso espiritual acaba enfraquecendo também. As benzedeiras precisam da natureza para performar a cura, a destruição da natureza quebra o mundo espiritual”.
Para representar Manaus, as meninas do Pará convidaram Cida Ariporia, artista indígena Kokama, rapper, produtora cultural e pioneira do rap no Amazonas, rimando versos que falam da questão climática, dos povos originários e dos direitos das mulheres.
Ela destacou os impactos dos eventos climáticos extremos que a cidade viveu em 2023, com fumaças de queimadas, calor intenso e a seca histórica, que afetou os 62 municípios do Amazonas. “Quando tinha fumaça a gente não podia fazer show, justamente por causa da questão da respiração. A seca refletiu no trabalho que a cultura hip-hop tem em outros municípios do Amazonas e acabamos impossibilitados de ir fazer esse trabalho”, explicou.
Cenário de censura
Raquel Cruz Lima (de vestido branco) com as artistas convidadas (Foto: Aline Fidelix/Artigo 19).
A ocorrência de tragédias ambientais, intensificadas pela crise climática, aprofunda desigualdades, reforça a violência de gênero e prejudica a construção de estratégias coletivas para mitigar os efeitos do aquecimento global.
Em 2023, a Artigo 19 divulgou a publicação “Empoderamento legal e liberdade de expressão: um guia para comunicadoras, artistas e jornalistas” e o relatório “Violações à liberdade de Expressão e Resistências na Região Amazônica” que, em dois cadernos, investiga a violência contra comunicadoras e defensoras de direitos humanos, além de analisar a redução do espaço cívico por meio do ataque do direito ao protesto.
A coordenadora Raquel da Cruz Lima afirmou que o objetivo do evento foi “destacar a arte como uma forma de mobilização política e como artistas mulheres têm, historicamente, sofrido censura e perseguição, o que foi especialmente grave nos anos do governo Bolsonaro.” Ela chamou o fato de que artistas seguem necessitando de proteção pelos agentes do estado brasileiro e também pelos órgãos internacionais.
Em um contexto de permanente ameaça à liberdade de expressão de mulheres artistas, jornalistas e comunicadoras, a grafiteira e artista visual Isa Muriá garantiu que não há romantismo nessa caminhada.
“É muita luta. Falar de questões climáticas ou estar ligado ao movimento indígena, por exemplo, pode ser até perigoso”.
Isa Muriá (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real).
Nascida e criada na Reserva Extrativista Mãe Grande de Curuçá, território originário Tupinambá localizado no Pará, no município de Curuçá, Muriá envereda seus caminhos na arte de forma orgânica ao se conectar com a questão climática.
Foi por meio do movimento indígena e da proximidade com outras “amazônias”, além da sua própria realidade de viver em uma reserva ameaçada pela própria atividade extrativista, que a artista passou a abordar a luta e a defesa pelos territórios, pelos rios e pelos direitos humanos dos povos da Amazônia.
“Tem a ver com a minha família, meus tios, que viveram a vida inteira como pescadores e hoje em dia têm maior dificuldade para se aposentar. É preciso sempre lutar muito para ter coisas básicas e acesso aos direitos sociais na Amazônia, é muito dolorido. Eu percebi que eu estou junto nessa luta. É pela minha própria vivência, pela vivência da minha família e do contexto que eu venho”, observou.
A obra que Isa trouxe para a intervenção artística mostra uma mulher indígena com grafismo pintado em seu rosto, como uma perspectiva da cultura indígena, mas adornada por um Juliet, modelo de óculos escuros da coleção X-Metal, da marca norte-americana Oakley, comercializado inicialmente nos anos 1990 e que virou símbolo da moda nas periferias brasileiras.
A ideia é unir as vivências indígenas nas aldeias e nas cidades, “porque o jovem indígena quer ir ao baile, quer curtir a aparelhagem e ter acesso ao lazer no contexto periférico”.
“É para justamente mostrar que a pessoa indígena está em contexto urbano aqui na Amazônia. Aqui as paisagens são misturadas, o contexto do interior e o contexto urbano. Aqui em Manaus você vê uma palafita na beira do rio, nos bairros dentro da cidade. O jovem indígena também está nesse contexto periférico. Eu trago essa raiz do mangue do meu território e coloquei no cabelo que pintei, que é bem simbólico também dentro da cosmologia Tupinambá”.
Evento reuniu as mulheres artistas em Manaus (Foto: Aline Fidelix/Artigo 19).
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